Veio parar-me às mãos um livro de edição brasileira, cuja existência desconhecia, da autoria de um personagem contemporâneo da Revolução Francesa, Henri Béraud, amigo de infância em Arras e de toda a breve vida de Maximilien Robespierre, de quem curiosamente os historiadores não costumam fazer grandes referências. Vizinho de Maximilien em Arras (traça, aliás, um perfil diferente do habitual e muito interessante do seu pai e do episódio do seu abandono do lar familiar e dos quatro filhos, após a morte da esposa), colega de escola em menino, estiveram separados durante doze anos, por Robespierre ter sido convidado para estudar no famoso Colégio Louis-le-Grand, graças aos seus méritos de aluno disciplinado e sabedor. Viriam a reencontrar-se mais tarde, já jovens, e mantiveram desde aí uma amizade respeitosa, quase apolítica, o que fez com que Béraud se mantivesse sempre na estima do seu amigo e importante protagonista da Revolução. Algum tempo após ter concluído o curso de Direito e de ter iniciado uma desinteressante carreira de advogado em Arras, por vicissitudes da sua vida familiar, Béraud migra para Paris, onde acabaria por se fixar, exercendo a profissão de juíz de paz. O livro tem o título, em português, «Meu amigo Robespierre» e é um testemunho interessante da vida do «primeiro cidadão» da República Jacobina, escrito num tom de intimidade de um amigo que quer salvaguardar a memória do que viu, e não tanto desculpar ou isentar o protagonista biografado das suas responsabilidades históricas, boas ou más aos seus olhos. O livro foi concluído e prefaciado pelo seu autor em 29 de Janeiro de 1825.
O tom da obra é necessariamente intimista e frequentemente atravessado por reflexões do autor sobre o seu amigo, que não deixa de julgar com severidade, ainda que usando quase sempre da indulgência que é própria da amizade. Béraud faz um traço do carácter e da personalidade de Robespierre, que vai ao encontro do que dele sabemos: afectado, ardiloso, trabalhador, hesitante, estratega, legalista, melindroso, crente, fanaticamente crente na transcendência e no papel da sua pessoa para preservar a religiosidade do povo francês, racionalista, leitor ávido e acrítico de Rousseau, receoso, quase esquizofrénico político pelo receio das conspirações contra si, reactivo, implacável, incorruptível, influenciável, vaidoso e snob, doente, e – pasme-se! –, ao invés da opinião comum, interiormente muito fraco, se tivermos em conta as palavras de sua irmã Charlotte: «Esse homem tão enérgico não tem, na intimidade, força nenhuma».
Este perfil de Maximilien humaniza-o um pouco mais do que aquilo a que nos habituámos, e que, por exemplo, o filme de Wajda retrata (Danton – O processo da Revolução), num papel extraordinário de um extraordinário actor ucraniano Wojciech Pszoniak, que faz um Robespierre pesado, introspectivo, impiedoso, felino e fatal. Pelo contrário, Béraud, que garante que o seu amigo «era bom», embora admitindo que «o patriotismo o afastava da piedade», reparte as culpas dos períodos mais negros da Revolução por vários personagens, não regateando, contudo, as necessárias responsabilidades ao seu amigo, mas rejeitando a diabolização com que alguma História posterior o tratou. Assim, sobre a morte dos Girondinos, Béraud afirma que «Robespierre não desejava a sua morte, e que só a contragosto consentiu nela». E lembra, ao encontro de muitos outros autores que referem, por exemplo, o modo imprudente como os Girondinos hostilizaram Danton na Convenção, quando este lhes tentou dar a mão, que «na luta em que pereceram, os Girondinos foram, muitas vezes, os agressores». Na queda de Luís XVI e no fim da monarquia, Béraud afasta, embora com visível pena, todas as responsabilidades do seu amigo («Sou obrigado a dizer que Robespierre não teve nenhum papel no dia 10 de Agosto»). Imputa, com visível exagero, as temíveis leis do Prairial, ou a leitura e execução que se fez delas, a «um mestre do crime, chamado Fouché», e defende a tese de que a diabolização do Incorruptível é feita pelos seus inimigos com a intenção de o fazerem perder e de o destituirem do poder, coincidindo, assim, com as palavras do próprio Robespierre proferidas na Convenção a 8 de Thermidor, na véspera da sua queda: «Não há talvez um único indivíduo preso, um único cidadão tiranizado ao qual não houvessem dito a meu respeito: “Eis o autor da tua desgraça: serias feliz e livre se ele não existisse”». Já sobre a morte de Danton e Desmoulins, Béraud não isenta Robespierre das responsabilidades principais, embora diga também – o que não deixa de ser exacto – que ele deu «ouvidos às intrigas» que circulavam sobre Danton, que, de resto, tinha inúmeros inimigos entre os jacobinos (Billaud-Varenne e Saint-Just, sobretudo), e merecia o desprezo de muita gente pelo seu carácter venal e corruptível, que nem os seus mais amáveis biógrafos conseguem disfarçar.
O livro ganha particular interesse na sua parte final, que relata os últimos momentos do Incorruptível e os factos principais do golpe thermidoriano. Desses momentos ressalta a natureza fatalista do biografado, que quase não reage ao golpe, já sem força anímica, escudando-se num falso legalismo, em que nem ele mesmo acreditava, e em palavras – em muitas palavras -, em vez das necessárias acções. Uma vez vencido (calado, isto é, impedido de discursar) na Convenção, Robespierre deixa-se aprisionar e levar-se quase infantilmente ao cadafalso, como se fosse a sua última glória a confirmação do que profetizara a respeito de si mesmo. Um ponto importante, que curiosamente nem sempre é tido em conta pelos historiadores, é o relato dos acontecimentos no interior da sala Égalité, no Hotel de Ville, onde estava refugiado com os seus fiéis, Saint-Just, o irmão Augustin, Couthon, Lebas, Hanriot, Payan, entre outros, e o próprio Béraud, que o acompanhou como amigo, menos do que por razões políticas. Destes factos é muito interessante o relato que faz sobre a origem do tiro que Robespierre recebeu no seu queixo, no momento em que a sala foi invadida pelos soldados da Convenção, e que praticamente o matou. Sobre este famoso tiro existem ainda estranhamente duas teses, já que Béraud, presente no momento dos factos, confirma a primeira: tentativa de suicídio ou um tiro disparado por um soldado convencional, o sargento Merda. Seja como for, Robespirre não mais recuperaria do ferimento, tendo sido guilhotinado no dia seguinte.
Uns dias corridos sobre estes factos, Collot d’Herbois, um terrorrista do Comité de Salvação Pública, transformado em thermidoriano, escrevia estas palavras. «Se Robespierre, em vez de ter ficado entretido no Hotel de Ville, tivesse marchado à cabeça dos oito ou dez mil homens que enchiam a Place de Gréve, e juntamente com Couthon tivessem levantado o povo com os seus discursos, estaríamos perdidos.». Mas, como relata Béraud, Robespierre preferiu desistir. A revolução cansa, poderia ter sido o seu epitáfio.
O tom da obra é necessariamente intimista e frequentemente atravessado por reflexões do autor sobre o seu amigo, que não deixa de julgar com severidade, ainda que usando quase sempre da indulgência que é própria da amizade. Béraud faz um traço do carácter e da personalidade de Robespierre, que vai ao encontro do que dele sabemos: afectado, ardiloso, trabalhador, hesitante, estratega, legalista, melindroso, crente, fanaticamente crente na transcendência e no papel da sua pessoa para preservar a religiosidade do povo francês, racionalista, leitor ávido e acrítico de Rousseau, receoso, quase esquizofrénico político pelo receio das conspirações contra si, reactivo, implacável, incorruptível, influenciável, vaidoso e snob, doente, e – pasme-se! –, ao invés da opinião comum, interiormente muito fraco, se tivermos em conta as palavras de sua irmã Charlotte: «Esse homem tão enérgico não tem, na intimidade, força nenhuma».
Este perfil de Maximilien humaniza-o um pouco mais do que aquilo a que nos habituámos, e que, por exemplo, o filme de Wajda retrata (Danton – O processo da Revolução), num papel extraordinário de um extraordinário actor ucraniano Wojciech Pszoniak, que faz um Robespierre pesado, introspectivo, impiedoso, felino e fatal. Pelo contrário, Béraud, que garante que o seu amigo «era bom», embora admitindo que «o patriotismo o afastava da piedade», reparte as culpas dos períodos mais negros da Revolução por vários personagens, não regateando, contudo, as necessárias responsabilidades ao seu amigo, mas rejeitando a diabolização com que alguma História posterior o tratou. Assim, sobre a morte dos Girondinos, Béraud afirma que «Robespierre não desejava a sua morte, e que só a contragosto consentiu nela». E lembra, ao encontro de muitos outros autores que referem, por exemplo, o modo imprudente como os Girondinos hostilizaram Danton na Convenção, quando este lhes tentou dar a mão, que «na luta em que pereceram, os Girondinos foram, muitas vezes, os agressores». Na queda de Luís XVI e no fim da monarquia, Béraud afasta, embora com visível pena, todas as responsabilidades do seu amigo («Sou obrigado a dizer que Robespierre não teve nenhum papel no dia 10 de Agosto»). Imputa, com visível exagero, as temíveis leis do Prairial, ou a leitura e execução que se fez delas, a «um mestre do crime, chamado Fouché», e defende a tese de que a diabolização do Incorruptível é feita pelos seus inimigos com a intenção de o fazerem perder e de o destituirem do poder, coincidindo, assim, com as palavras do próprio Robespierre proferidas na Convenção a 8 de Thermidor, na véspera da sua queda: «Não há talvez um único indivíduo preso, um único cidadão tiranizado ao qual não houvessem dito a meu respeito: “Eis o autor da tua desgraça: serias feliz e livre se ele não existisse”». Já sobre a morte de Danton e Desmoulins, Béraud não isenta Robespierre das responsabilidades principais, embora diga também – o que não deixa de ser exacto – que ele deu «ouvidos às intrigas» que circulavam sobre Danton, que, de resto, tinha inúmeros inimigos entre os jacobinos (Billaud-Varenne e Saint-Just, sobretudo), e merecia o desprezo de muita gente pelo seu carácter venal e corruptível, que nem os seus mais amáveis biógrafos conseguem disfarçar.
O livro ganha particular interesse na sua parte final, que relata os últimos momentos do Incorruptível e os factos principais do golpe thermidoriano. Desses momentos ressalta a natureza fatalista do biografado, que quase não reage ao golpe, já sem força anímica, escudando-se num falso legalismo, em que nem ele mesmo acreditava, e em palavras – em muitas palavras -, em vez das necessárias acções. Uma vez vencido (calado, isto é, impedido de discursar) na Convenção, Robespierre deixa-se aprisionar e levar-se quase infantilmente ao cadafalso, como se fosse a sua última glória a confirmação do que profetizara a respeito de si mesmo. Um ponto importante, que curiosamente nem sempre é tido em conta pelos historiadores, é o relato dos acontecimentos no interior da sala Égalité, no Hotel de Ville, onde estava refugiado com os seus fiéis, Saint-Just, o irmão Augustin, Couthon, Lebas, Hanriot, Payan, entre outros, e o próprio Béraud, que o acompanhou como amigo, menos do que por razões políticas. Destes factos é muito interessante o relato que faz sobre a origem do tiro que Robespierre recebeu no seu queixo, no momento em que a sala foi invadida pelos soldados da Convenção, e que praticamente o matou. Sobre este famoso tiro existem ainda estranhamente duas teses, já que Béraud, presente no momento dos factos, confirma a primeira: tentativa de suicídio ou um tiro disparado por um soldado convencional, o sargento Merda. Seja como for, Robespirre não mais recuperaria do ferimento, tendo sido guilhotinado no dia seguinte.
Uns dias corridos sobre estes factos, Collot d’Herbois, um terrorrista do Comité de Salvação Pública, transformado em thermidoriano, escrevia estas palavras. «Se Robespierre, em vez de ter ficado entretido no Hotel de Ville, tivesse marchado à cabeça dos oito ou dez mil homens que enchiam a Place de Gréve, e juntamente com Couthon tivessem levantado o povo com os seus discursos, estaríamos perdidos.». Mas, como relata Béraud, Robespierre preferiu desistir. A revolução cansa, poderia ter sido o seu epitáfio.