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Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat |
O modelo educativo português, que seguimos, pelo menos, desde a implantação da República, é seguramente o mais marcante vestígio ideológico da Revolução Francesa na nossa mentalidade social e política. Esse modelo é estatista, porque pretende que o estado monopolize a educação, ou através de uma rede pública de escolas, ou da imposição dos seus valores e das suas regras às escolas particulares, e vê a educação como um meio para a formação de cidadãos e não de indivíduos. Estas duas características são dominantes no nosso sistema de ensino – desde o infantil ao superior – e atravessam todo o século passado e aquele em que vivemos. Na verdade, quer na República, quer no Estado Novo, quer na III República, a Escola tem sido essencialmente um veículo de transmissão dos valores que o estado quer, em cada momento, transmitir à sociedade, formando cidadãos, isto é, pessoas que se identificam com esses valores públicos e com o estado que os promove (sucessivamente o republicanismo, o anticlericalismo, a laicização, o nacionalismo antidemocrático, o socialismo e a democracia social e estatista), em vez de formar indivíduos, transmitindo valores éticos e conhecimentos que os habilitem a pensar autonomamente. Por isso também, os três regimes nunca abdicaram do primado do ensino público, sobretudo na Universidade, onde se propricia a formação das consciências. A República, Salazar e Abril tiveram e tem este último uma aversão profunda à educação privada, isto é, toda a que se realiza fora do estado. Herdaram-na da Revolução Francesa, por cujos valores orientaram e orientam o seu sistema e as suas políticas educativas.
Muito antes de 1789, ainda na França absolutista, já o país debatia vigorosamente a educação, as funções que lhe cabiam cumprir, o modelo que deveria seguir, os métodos pedagógicos mais eficazes, a natureza laica ou eclesiástica das temáticas, e, socretudo, o papel histórico da Igreja na formação e administração das escolas e o futuro que deveria desempenhar nessa importante actividade social. Os philosophes anteriores à Revolução não foram estranhos a este debate. O espírito das «luzes» impele-os a afastarem-se de uma educação que, como escreve Georges Gusdorf (Le fin de l’éducation), cuide de «preparar os espíritos cultivados capazes de brilhar na boa sociedade», dando a sua preferência a um modelo educativo que se destine a formar «cidadãos úteis, suscetíveis de contribuir à empreitada coletiva da civilização», conclui. Desde logo, Rousseau, com o Émile, ou Da Educação, livro no qual fazia a defesa de uma pedagogia naturalista, distanciada dos vícios adquiridos pelo homem na vida em sociedade. Uma educação eminentemente moral que reforçasse a criança, para que ela pudesse enfrentar, no futuro, um mundo corrupto e desviante. Para Rousseau este naturalismo educativo e pedagógico tinha por finalidade essencial formar os futuros cidadãos capazes de exercer a soberania, que compreendessem e contribuissem para a formação da vontade geral. Por outras palavras, para o estado.
Mas outros pensadores contribuiram, antes da Revolução, para este debate, muitos deles com sugestões e animosidades bem menos especulativas do que a de Rousseau. Entre eles, La Chalotais (Louis-René de Caradeuc de La Chalotais: 1701 – 1785), autor do Ensaio sobre a Educação Nacional. Como todos os autores que pretendiam, nessa época, inovar, La Chalotais defendia a secularização da educação, retirando-a à Igreja e entregando-a ao Estado. Todavia, é devid a Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet: 1743 – 1794) a teoria geral da educação que marcaria o espírito da Revolução e dos tempos vindouros, neles se incluindo os nossos.
Condorcet foi um dos derrareiros filósofos das «luzes». Segundo Michelet, terá mesmo sido «o último dos filósofos». Matemático, aristocrata com ideias liberais, amigo e companheiro de Turgot sobre quem escreveu uma biografia laudatória (Vie de M. Turgot), aderiu à Revolução sem ser um revolucionário, menos ainda um político. Acreditava firmemente na educação como força motriz das transformações sociais, e, eleito deputado ainda na Assembleia Nacional, submete-lhe um projecto de instrução pública e um outro de uma Constituição (este último elaborado com Thomas Paine). Ambos foram reprovados por influência de Robespierre. Em bom rigor, o projecto de instrução pública padeceu do veto à Constituição, que Robespierre considerava moderada e à qual haveria de contrapor a sua, aprovada em 93. Todavia, em quase nada ele desmerecia do espírito da época e da prórpia Revolução. Essa proposta fundava-se numa obra que Condorcet publicou em 1791, intitulada Cinq Mémoires sur l 'instruction publique, na qual defendia que a desigualdade da educação era uma das «principais fontes da tirania». Por essa razão, ele entendia que a instrução era uma obrigação social que o estado devia assumir. A educação pública, universal, laica e distanciada da Igreja era assim «un devoir de la société à l'égard des citoyens», como o autor defende ao longo da primeira das cinco partes das Cinq Mémoires, toda ela dedicada à instrução enquanto bem e serviço público. Morreria no cárcere de Bourg-Clamart (ao que se julga cometendo suicídio com um veneno que lhe foi facultado por Pierre-Jean George Cabanis, seu companheiro de presídio), para o qual fora remetido em Março de 94, após uma fuga de oito meses, sob a acusação de conspirar contra a República que lhe foi movida por François Chabot, em Julho de 93, um dantonista obtusamente adversário dos girondinos, que seria ironicamente guilhotinado com Danton sete dias depois.
Condorcet não assistiria ao triunfo inequívoco das suas ideias, não só em França, como na grande maioria dos países europeus, entre eles Portugal. Infelizmente, elas assistem ao espírito que orienta a educação de cariz estatista que é o nosso. A educação forma os cidadãos da República, imprime-lhes os seus valores, em vez de contribuir para a formação de indivíduos autónomos da ideologia do regime, isto é, de verdadeiros homens livres. As suas ideias eram, contudo, as da Revolução. A 13 de Agosto de 93, num discurso à Convenção, Danton proclamava-as: «O filho do povo será criado às custas do supérfulo dos homens de fortunas escandalosas», dizia. «Ao semear no vasto campo da República», continuou, «não deveis contar o preço da semente. Depois do pão, a educação é a primeira necessidade do povo! Meu filho não me pertence, ele é da República!» Uns meses antes, a 19 de Abril, afirmara perante a mesma assembleia: «A educação pública é uma dívida social que é preciso saldar desde que os vossos esforços lograram derrubar o despotismo e o reinado dos padres.» E Saint-Just, nas suas medíocres Instituições Republicanas, indo mais longe no estatismo, antecipava em boa medida os excessos do modelo comunista, ao defender a tutela das crianças pelo estado desde pequena idade, impondo-lhes uma educação «cívica», desde a transmissão das regras da moral republicana, até à imposição de hábitos alimentares (vegetarianismo!) e sexuais (virgindade feminina até à idade adulta). De todo em todo, é o mesmo espírito com variações de grau: a educação como bem público gerido pelo estado.
Esses princípios são inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pela Convenção, ironicamente, em pleno Terror (a versão original, de 89, não os incluía, dada a sua natureza essencialmente burguesa e garantística dos direitos fundamentais de primeira geração, conforme a tradição constitucional da época, e não de direitos sociais). Diz expressamente o seu artigo 22º: «A instrução é uma necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder o progresso da inteligência pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.» Onde se lê «sociedade» deverá ler-se «estado», como por experiência própria infelizmente sabemos.