quarta-feira, 1 de junho de 2011

maçonaria e revolução



Um dos assuntos mais controversos da Revolução Francesa, provavelmente o mais difícil de todos, tem a ver com o papel que a Maçonaria nela desempenhou. As opiniões vão, neste assunto, do zero ao infinito, e ora é atribuída à Ordem Maçónica um papel central e decisivo, fosse na preparação de uma conspiração e uma conjura para fazer eclodir o furor revolucionário contra a Família Real, fosse na transmissão dos valores que a inspiraram, ora lhe atribuindo um estatuto de algoz, responsável pelas mortes de Setembro e do Terror, ora fazendo dela uma vítima entre as muitas que sucumbiram sob os golpes incontáveis da guilhotina. Não me apetece dizer, como é comum neste género de polémicas históricas, que a verdade se encontrará algures no permeio das duas extremidades. Sou – confesso-o de imediato – mais propenso à tese de que a Maçonaria foi devorada por uma revolução que apenas ajudou a preparar pela influência do pensamento dominante da época, pensamento, de resto, que não era nem uniforme, nem originariamente seu, nem, tão-pouco, partilhado unanimemente entre os seus membros – os Irmãos -, e para a qual somente contribuiu pela acção individual de alguns maçons, mas nunca em função de qualquer plano pré-estabelecido. Em contrapartida, não hesito em afirmar que muita da Maçonaria que hoje conhecemos – concretamente a que está sob a órbita do Grande Oriente de França – foi visceralmente influenciada pelos valores saídos da revolução, entre eles o anti-clericalismo, a laicidade, o republicanismo e o igualitarismo. Por outras palavras, não foi a Maçonaria que influenciou a Revolução, mas a Revolução que influenciou a Maçonaria.

Existem dificuldades metodológicas intransponíveis na convicção de que a Maçonaria foi determinante numa conspiração revolucionária na França de 1789. A primeira é óbvia: não houve uma mas, pelo menos, quatro Revoluções Francesas, entre 89 e 99, e cada uma das que se ia seguindo devorou apressada e violentamente a anterior. A primeira dessas revoluções foi aristocrática e constitucional, por um lado partidária do Duque de Órleans (Grão-Mestre do Grande Oriente de França, bem sei e já lá iremos...), por outro simplesmente defensora de um sistema de monarquia constitucional com Luís XVI, segundo o modelo inglês, ou, preservando a monarquia, seguindo os passos do constitucionalismo liberal norte-americano. Nesse período pontificam homens como La Fayette, Mirebeau, Barnave, entre outros. Alguns eram maçons, como terá sido o caso do primeiro e do segundo, outros, como Barnave, sobre quem recaiu também essa suspeita, estão hoje, como eles, ilibados pela maioria dos historiadores, visto o seu nome não constar de nenhum quadro das lojas onde foi referenciado (sobre Barnave vd. Albert Soboul, La Franc-Maçonnerie et la Rèvolution Française, Annales Historiques de la Rèvolution Française, 1969, nº 3). Em todo o caso, na Assembleia Constituinte saída do Jogo da Péla, calcula-se que perto de 200 deputados seriam maçons, num total de cerca de 1177. Iso não significa, todavia, que esses deputados estivessem irmanados de um qualquer plano revolucionário-maçónico, de que tivessem sido incumbidos por um qualquer directório secreto. Os tempos eram de excessivo fervor para tamanha contenção.

A segunda revolução – a Revolução Girondina – foi burguesa, defensora dos direitos de propriedade, monárquica e constitucionalista, por convicção, e parcialmente regicida, por necessidade, ainda que só a Convenção tenha decidido sobre o destino de Luís XVI. Dos deputados da Assembleia Legislativa deste tempo, calcula-se que mais de 200 fossem maçons, num total de 745. Muitos dos chefes girondinos eram igualmente maçons, como Brissot, segundo se crê, membro da loja Les Neuf Soeurs, também frequentada por Danton e Desmoulins, cuja acção foi, todavia, determinante em levá-lo, a Brissot e ao directório girondino, ao cadafalso... A terceira revolução, jacobina, teve também protagonistas maçons, entre eles, segundo se acredita, os seus chefes principais, Georges-Jacques Danton e Maximilien Robespierre. Ainda que este último não fosse devoto obediente da Ordem, frequentara em Arras, na juventude, a loja Hesdin, enquanto Danton e outros, como Desmoulins e Hérbert, sejam tidos como obreiros da célebre loja de Paris Les Neuf Soeurs. Isso não logrou, todavia, que a célebre «harmonia maçónica» reinasse entre eles, ao ponto dos três últimos – Hérbert, Desmoulins e Danton, terem visto as suas vidas findarem na guilhotina, por acção do primeiro. E o mesmo sucedeu no ciclo seguinte da Revolução Thermidoriana, na qual padeceram, por sua vez, os maçons Robespierre e Couthon, entre outros também, às mãos de maçons, alguns deles que, tal como eles, pertenciam até ao Comité de Salvação Publica, como, segundo parece, Collot d’Herbois e o próprio Barras.

Não obstante a polémica sobre a filiação maçónica de muitos destes homens (há quem afirme que não existem provas seguras da ligação à Maçonaria de nomes como o próprio Mirebeau e até mesmo de Danton), a verdade é que essa é uma questão desnecessária para se poder avaliar a importância da Ordem Maçónica nos momentos determinantes da Revolução. Na verdade, a tese favorável mais radical inclina-se para afirmar que a Revolução foi obra da Maçonaria e que se desenrolou consoante os seus planos. Ora, isso é desmentido pela evidência dos factos e pela lógica das coisas. Primeiro, não houve «uma» revolução, mas uma sequência de golpes e contra-golpes que levaram à sucessão e destituição de diferentes grupos políticos no poder, assim como à instauração de regimes políticos também eles desiguais nos valores estruturantes. Por conseguinte, nada disto era planificável e foi andando ao sabor dos acontecimentos e dos protagonismos individuais e de pequenos grupos dirigentes, e a factos muitas vezes comprovadamente acidentais. Segundo, porque se alguma coisa caracteriza os dez anos da Revolução foi o facto dela ter, como dizia premonitoriamente Vergniaud, «como Saturno, devorado os seus filhos», ou, utilizando linguagem maçónica, devorado muitos dos seus irmãos. Por outras palavras, não se vê possível um complot maçónico (ou outro qualquer) que traçasse um plano tão caótico quanto o foi a sucessão de acontecimentos da Revolução Francesa, nem se imagina que os homens que eventualmente o tivessem gizado semelhante tragédia quisessem ser suas vítimas pela sua própria morte e pela morte de muitos dos seus amigos. Não é, pois, razoável imaginar que os acontecimentos da Revolução Francesa fossem susceptíveis de um plano pré-concebido, menos ainda que tivesse sido imaginada e executada por quem quer que fosse, menos ainda pelas suas sucessivas vítimas.

Ainda que a maior parte dos historiadores do tempo e da primeira parte do século XVIII (entre eles Michelet e Blanc) quase a não refiram elhe não dêm relevo, a tese da influência maçónica na Revolução é práticamente contemporãnea dos primeiros acontecimentos revolucionários, e é devida ao Abade Lefranc, um dos mais de 180 padres assassinados nos massacres de Setembro de 92, que, nesse mesmo ano, publicou um livro extenso intitulado Conjuration contre la religion catholique et les souverains, dont le projet conçut en France doit s’exécuter dans l’Univers entier, no qual defendeu a tese de que fora a Maçonaria a autora da Revolução. Lefranc foi seguido na literatura anti-maçónica e anti-revolucionária pelo célebre Abade Augusto Barruel, que, em 1798, publicou o seu não menos célebre livro Mémoires pour servir à la histoire du jacobinisme. Estas obras ajudaram a criar a ideia da existência de uma conspiração vinda de fora da França contra a França e as monarquias europeias, que originou a Revolução, da qual seria responsável a Franco-Maçonaria francesa, enquanto mero tentáculo espúrio da «sinistra» Ordem dos Iluminados da Baviera, os célebres Illuminati que ainda hoje enchem páginas imensas da literatura «histórica» fantasiosa, como são o caso dos folhetins de David Brown (sobre as teorias históricas conspirativas, entre elas as que envolvem a Revolução Francesa e a Maçonaria, os Illuminati e os Templários, vd. a interessante obra de Nicholas Hagger, The Secret History of the West, 2005).

É evidente que, quanto mais não fosse, o facto destas obras contemporâneas da Revolução a envolverem com a Maçonaria, obriga-nos a não ser ingénuos e a perceber que a Maçonaria não terá sido um elemento absolutamente neutro no curso dos acontecimentos, embora isso não faça dela, como acima já adiantámos, um agente particularmente activo da Revolução. Vejamos, então, se estes dois aspectos são ou não conciliáveis entre si.

Comecemos pela constatação de uma evidência: a Maçonaria tinha, muito antes dos primeiros acontecimentos da Revolução, uma expressão forte na sociedade francesa, principalmente nos centros urbanos, como Paris, onde a Revolução verdadeiramente eclodiu. As primeiras lojas em solo francês (não necessariamente «francesas», como veremos já em seguida) surgiram logo após 1717 e á fundação, nesse ano ocorrida, da Grande Loja de Londres, a casa-mãe da chamada moderna Maçonaria Especulativa ou Filosófica, em contrapartida à Maçonaria Operativa dos artesãos e construtores de templos e catedrais vinda do final da Idade Média e do período do Renascimento. Em 1735 eram inúmeras as lojas de origem inglesa (e também escocesa) sediadas em França, ao ponto de, contrariando as intenções hegemónicas dos ingleses, ter sido proclamada a necessidade de nomeação de um Grão-Mestre próprio para França. A 24 de Junho de 1738, reunidos numa assembleia geral de maçons, foi instituído o cargo de Grãp-Mestre Geral e Perpétuo dos Maçons do Reino de França, cargo confiado ao Duque d’Antin, e foi criada a Grande Loja de França (a denominação formal é, contudo, apenas de 1765). Em 1743, em virtude da morte do primeiro Grão-Mestre, é nomeado para o cargo o Irmão Conde de Clermont, um Bourbon e aristocrata, primo de Luís XVI, ao qual se sucede, em 1772, o Irmão Duque de Chartes, mais tarde, Duque d’Orléans, no cargo agora designado de Sereníssimo Grão-Mestre da Ordem de França, Ordem essa designada, desde esse ano, por Grande Oriente de França. O novo Grão-Mestre, que atravessou os acontecimentos de 89, ficou célebre, mais tarde, com o epíteto de Philippe-Egalité...

Antes de entrarmos na suposta «conspiração orléanista» a que Philippe deu azo, segundo a qual uma conjura maçónica-revolucionária teria por fim pôr no trono esse primo de Luís XVI (o que, mantendo-se a tese conspirativa, desvia, contudo, o seu foco da conspiração jacobina e republicana), uma nota somente para dizer que, antes do começo da Revolução e até ao surto da emigração aristocrática, a Maçonaria francesa era sobretudo composta pela aristocracia citadina e pela alta burguesia, à qual se juntava um número expressivo de padres católicos (sobre a presença de padres católicos na Maçonaria do tempo da Revolução, vd. o interessante trabalho de doutoramento de José A. Ferrer Benimeli, Arquivos Secretos do Vaticano e a Maçonaria: História de uma Condenação Pontifícia, 1976). A Maçonaria francesa não era, por conseguinte e pela natureza de quem a compunha, um antro de conspiradores que quisessem destruir a nobreza francesa, o clero e, muito menos ainda, implantar a República. Sobre os sentimentos republicanos dos primeiros revolucionarios franceses, vale a pena recordar que Desmoulins disse, pouco antes de morrer, que em 1789, na Tomada da Bastilha, os republicanos não seriam, em França, mais do que meia-dúzia (o próprio Robespierre só se confessa republicano pouco antes da queda do Rei e, mesmo assim, com grandes cautelas e hesitações). Ou seja, a deriva republicana de 92, 93 e 94 não estava manifestamente no espírito dos revolucionários de 89, menos ainda dos maçons dessa altura. A Maçonaria era, assim, nesses tempos primevos da Revolução, um ponto de convergência entre a nobreza e a alta burguesia e o clero, na qual se debatiam, sem dúvida, as «novas ideias», sobretudo as que eram veículadas pelos Enciclopedistas, mas não propriamente onde se preparasse uma conspiração com a finalidade de retirar do vértice do poder político e social as pessoas e as ordens sociais que efectivamente a compunham. Alguns exemplos para melhor ilustrar o que aqui fica dito: a Loja Les Amis Réunis, fundada em 1786, era composta, no seu período aúreo, por 68 obreiros, dos quais 3 padres, 22 burgueses e os restantes aristocratas; a La Nouvelle Union contava com 70 membros, dos quais 19 nobres, 8 padres e os demais pertencentes à burguesia próspera de Paris. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas há um facto inquestionável: dos sans-culottes, a verdadeira «vanguarda revolucionária», não encontramos o mais ténue vestígio nos quadros dos obreiros das lojas. Em contrapartida, muitos dos membros proeminentes da Maçonaria francesa emigram ainda antes de 92 (alguns, por sinal membros proeminente, logo em 89), outros são presos ou mortos (veja-se o caso da célebre Princesa Laballe, amiga privilegiada de Maria Antonieta – também ela tida, por alguns historiadores, como membro da maçonaria feminina -, que foi morta nos massacres de Setembro, do mesmo modo que o padre Lefranc, e que chegou a ser Venerável da loja «Le Contrat Social»), sendo que a maioria das lojas abate colunas em 91 e em 92, após o 10 de Agosto, o que denota o seu claro afastamento dos caminhos republicanos e regicidas seguidos pela Revolução.

Tratemos, então agora, do caso particular de Philippe-Egalité, Grão-Mestre do Grande Oriente de França, indiscutível pretendente ao trono em substituição do seu primo Luís XVI, e a cujas influências se imputam muitos dos primeiros acontecimentos revolucionários. Parece hoje inquestionável que, apoiado por homens como Mirebeau e Choderlos de Laclos e, até - há quem o sustente - pelo próprio Danton, o Duque de Orléans conspirou contra o seu primo e gastou nessa actuação uma verdadeira fortuna, ele que era o segundo maior proprietário do reino, imediatamente a seguir a Luis XVI. Estas eram, pelo menos, as suspeitas de Luís XVI e, sobretudo, de Maria Antonieta, que votava a Philipe uma desconsideração muito particular, embora hoje se acredite que a sua participação no fomento do fervor revolucionário não teve a dimensão, pelo menos nas ruas de Paris, que alguma historiografia lhe concedeu. É certo que ele foi, como já vimos, Grão-Mestre do GOF, mas parece também que a sua proximidade à Maçonaria era mais honorífica e formal do que material. O verdadeiro administrador-geral do Grande Oriente foi, por esses tempos e até 1789, quando emigrou para Inglaterra na sequência dos primeiros acontecimentos revolucionários (e, nesse mesmo ano, para Lisboa, onde veio a morrer), o émigré Sigismond de Montemorency-Luxembourg, adversário declarado do Duque d´Orléans e fiel partidário da Monarquia (na melhor das hipóteses, Constitucional...), que queria ver protagonizada por Luís XVI e não pelo seu duvidoso primo. Deste modo, poderemos concluir que os acontecimentos que levam até 1789 ultrapassam qualquer conspiração da Maçonaria, ou de uma loja maçônica, que pudesse ter sido concebida em favor das pretensões de Orléans. Esta, a ter existido, muito rapidamente perdeu fôlego e foi ultrapassada, pouco tempo depois de 14 de Julho, pela radicalização popular e sans-coulotte do processo revolucionário. Após a queda do Rei e o fim da Monarquia a 10 de Agosto de 92, o pobre Duque tornou-se uma figura verdadeiramente patética e transformou-se no absurdo Citoyen Égalité, ele que ainda no começo desse ano tentara uma reconciliação com Luís XVI, apenas frustrada pela intransigência, mais do que justificada, diga-se, do Rei. Caído em desgraça, foi preso a 6 de Abril de 1793, ainda pelo regime do Primeiro Terror. Em estado de desespero, o pobre homem tentou mesmo desmarcar-se do seu passado maçônico (o que demonstra bem que essa não era uma qualidade apreciada pela nova República), demitiu-se do cargo de Grão-Mestre a 5 de Janeiro de 93, e publicou uma deplorável carta de contrição no Jornal de Paris, a 22 de Fevereiro seguinte, pedindo desculpa por ter sido maçon nestes termos: «Não conhecendo a maneira pela qual se compõe o Grande Oriente e não devendo haver, na minha opinião, nenhum mistério e nenhuma assembléia secreta numa República, sobretudo no princípio do seu estabelecimento, já não quero envolver-me em coisa nenhuma do Grande Oriente, nem saber das assembleias de franco-maçons». O acto foi-lhe de nenhuma utilidade, já que a lâmina da guilhotina lhe trataria competentemente do pescoço a 6 de Novembro de 93.

Parecendo, assim, evidente, que a Maçonaria, enquanto organização, não participou num «plano» para realizar a Revolução Francesa, plano esse por si mesmo impossível de gizar, fica então pendente a possibilidade de ela ter sido, através das lojas, o veículo de divulgação das idéias revolucionárias, sobretudo do pensamento dos Philosophes. Se parece pacífico que Diderot, Rousseau e o próprio Condorcet (que teve um triste fim, como é sabido, nas prisões do Terror) foram maçons, e se as lojas terão servido para, por um lado, promover a aproximação social e até política da nobreza dominante e da burguesia ascendente, e, por outro lado, para que estas pessoas partilhassem, entre si, de uma considerável liberdade de expressão e de opinião no espaço maçónico, que lhes era socialmente muito mais reduzida antes de 89, a verdade é que muitos dos elementos tipológicos da idiossincrasia filosófica de alguma Maçonaria posterior, concretamente da francesa, não a influenciavam nesse tempo e foram adquiridos muito depois. Referimo-nos, muito concretamente, ao anti-clericalismo, ao republicanismo e até ao princípio da laicidade. Antes e imediatamente após o começo da Revolução, a Maçonaria francesa era monárquica, parte dela aceitava os valores estruturantes do Ancien Régime, embora a maioria fosse adepta do reformismo constitucional. Esta era a influência vinda de Inglaterra, mas, sobretudo, dos Estados Unidos, país inequivocamente fundado por maçons, que Lafayette trouxera e fizera plasmar no texto da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 2 de Outubro de 1789 pela Assembleia Nacional. E que valores são esses? São os da liberdade e da igualdade civil, do primado da lei, da propriedade, da necessidade da contenção do poder soberano, da Constituição, da separação de poderes, etc.. São ideias que, em bom rigor, provêm, em parte, do Iluminismo inglês e escocês, mais até do que do Iluminismo francês patente nas obras de Rousseau. Não por acaso, a defesa da ditadura de Robespierre – um fanático admirador de Jean-Jacques, haveria de fazer-se para além, ou mesmo contra estes valores e contra esta Declaração e a Constituição de 91, que é sua legítima filha. Por outro lado, os valores que, mais tarde, marcariam parte da Maçonaria de França, entre eles o anti-clericalismo e o jacobinismo republicano, não podem atribuir-se ao pensamento maçônico do tempo da Revolução. Voltaire, o grande filósofo anti-clerical, seria feito maçon a 7 de Março de 1778, menos de três meses antes de morrer, a 30 de Maio desse ano. Voltaire, anti-clerical e anti-católico toda a sua vida, terá querido morrer católico (segundo Carlos Valverde, que exibiu o número de Abril de 1778 da revista francesa Correspondence Littéraire Philosophique et Critique, onde está publicada uma declaração do filósofo anunciando a sua conversão e a sua confissão a um padre católico, o Padre M. Gautier), pelo que não terá procurado a Maçonaria para a tentar influenciar com um anti-clericalismo que já não possuía, como alguns autores defendem, obviamente sem qualquer sustentação. Não é igualmente correcto atribuir-se a Constituição Civil do Clero a qualquer influência maçônica, já que essa intromissão da política na Igreja de França se pode inscrever mais nos conflitos seculares entre os Estados católicos e a Igreja, de que a História de França é rica (vejam-se, por exemplo, os Papados de Avinhão e os conluios que a política internacional estabeleceu em torno do Grande Cisma), como foi rica a História de Portugal, com as inúmeras excomunhões de reis portugueses, com o Beneplácito Régio de Pedro I, para além das muitas Concórdias e Concordatas celebradas entre as autoridades políticas do Estado Português e a Igreja Católica, com o fim de pôr termo ou de evitar conflitos recíprocos. Para além disto, o ateísmo que marca hoje alguma Maçonaria Francesa era claramente rejeitada pelos maçons de então, até mesmo por Maximillien Robespierre, que tinha profundas convicções religiosas, e que atacou os herbertistas também pelo facto deles se declararem ateus (é célebre a fúria de Robespierre pela colocação de alguns cemitérios da frase «A morte é o sono eterno» devida a jacobinos partidários de Hérbert).

A questão da República também não era pertinente na Maçonaria pré e imediatamente pós-revolucionária. A Maçonaria, quando a República se implantou, praticamente desapareceu e, antes dela, era praticamente defensora da Monarquia Constitucional e avessa a uma via revolucionária que rompesse com os princípios originários da primeira Revolução. No Verão de 93 existiam em Paris 4 ou 5 lojas. No ano seguinte, o principal sustentáculo do que restara do Grande Oriente e que era seu administrador-geral, o banqueiro Tassin, foi condenado à morte e executado em Maio. O Grande Oriente desapareceu e ressuscitou, coxo e débil, com Napoleão, que fez dele um instrumento do seu poder pessoal, até 1815. Os valores republicanos que hoje o GOF reivindica, e que não fazem necessariamente parte do patrimônio de outras Obediências francesas, como as actuais Grande Loja Nacional Francesa e Grande Loja de França, acabaram por ser incorporados mais tarde, juntamente com o anti-clericalismo, e seriam pano de fundo da maioria dos movimentos e das revoluções republicanas européias e sul-americanas, do final do século XIX e do começo do seguinte. Destas e de outras questões dogmáticas, como a crença em Deus como o Grande Arquitecto do Universo, viria a ocorrer o cisma maçônico de 1877 entre a chamada Maçonaria Regular, de influência inglesa e sob a tutela da UGLE (United Grand Lodge of England) e a chamada Maçonaria Irregular, ou tradicional, nos países onde, como em Portugal, tem profundas raízes históricas, e que orbita em torno da tradição francesa do GOF. Esse cisma, que continua, hoje ainda, a dividir as Maçonarias do mundo inteiro, foi sendo gerado com o tempo, e de modo algum se pode dizer que, nos seus elementos dogmáticos, estivesse sequer latente durante a Revolução. Diga-se, assim, que neste como noutros temas que hoje a marcam, a Maçonaria francesa é mais filha do que mãe da Revolução iniciada em 1789 e declarada como finda em 1799, por Napoleão Bonaparte.