quinta-feira, 1 de abril de 2010

ética republicana

A convicção de que uma determinada forma de organização política ou de regime político pode comportar uma valoração ética superior aos demais gerou, no caso da República, a ideia da existência de uma “ética republicana”.

A origem da coisa reside na Revolução Francesa e nós, em Portugal, rapidamente a incorporamos desde, pelo menos, a Revolução de 1820, verdadeiramente portadora dos valores da república nascida em França, como bem notou recentemente o historiador Rui Ramos. Durante o nosso século XIX, sobretudo no último quartel, ao longo da I República e no regime instaurado no 25 de Abril, a República foi divinizada como portadora de uma ética que se contrapunha à natureza dissoluta e injusta da monarquia.

A Revolução Francesa operou uma ruptura com o Ancien Régime vigente em França e esse corte com o passado visava essencialmente o valor da igualdade política. Na verdade, o regime deposto em 1789 e nos anos que se lhe seguiram caracterizava-se pela estratificação social e pelo privilégio. De todo em todo, a igualdade política era bem maior em França antes de 79 do que se possa supor, como bem notou Tocqueville: a burguesia ascendera já à alta administração pública local e central e mesmo ao governo do reino. Só isto poderia, de resto, explicar que a burguesia pudesse ter imposto sistematicamente a sua vontade ao rei e aos outros estados da nação francesa, o que sucedeu imediatamente na reunião dês Estados Gerais, na qual o clero se encontrava profundamente dividido e a própria nobreza não estava unida.

Os privilégios mantidos ainda pela nobreza e pelo clero na França do Ancien Régime consistiam essencialmente em benefícios fiscais e em direitos de tributação herdados dos tempos medievais. Ao longo dos anos, os monarcas franceses esvaziaram o poder público e político dessas duas ordens sociais, abriram espaço à burguesia emergente, mas mantiveram-lhe esses privilégios de casta para os manterem sossegados e fieis. Nessa medida, a monarquia francesa dos Bourbon cometeu o erro de dar poder a quem era obrigado a sustentar economicamente o país e as demais ordens sociais. Nota também Tocqueville que o processo foi exactamente o inverso do que foi seguido pela monarquia inglesa, onde desde muito cedo vigorou o princípio da igualdade fiscal, sendo concedidos benefícios apenas a quem deles necessitava por carência económica e não por razão hereditária.

Assim, a Revolução de 1789 começou por ser um movimento de protesto da burguesia, reivindicador de igualdade social e fiscal, menos do que de igualdade política. Nessa altura ainda e, pelo menos, até 92, ano da deposição de Luís XVI, a República não era o fim comum da Revolução e dos revolucionários, sendo-o somente de uma minoria agrupada em torno da Montanha, e, mesmo esta – muito dividida – não pensava uniformemente nesta matéria. A Planície e a Gironda não se incomodavam por aí além com a criação de um regime de monarquia constitucional, que, de resto, chegaram a conceber na Constituição de 91.

A República foi a bandeira de uma minoria revolucionária jacobina, defendida por uma verdadeira “vanguarda sans-coulote” (embora quase todos pertencessem à burguesia e fossem juristas e advogados), nomeadamente por Robespierre, Danton, Marat, Couthon, Collot d’Herbois, Sain-Just, entre outros, que radicalizaram a Revolução a partir de 92 e instauraram a República em Setembro desse ano.
A inspiração valorativa do novo regime era colhida na leitura enviesada e romântica da história da República Romana. Aí perscrutavam-se elevados valores morais de honradez pessoal e de amor à pátria e à igualdade. Imaginavam-se heroísmos e sacrifícios notáveis dos republicanos virtuosos em defesa da liberdade e da comunidade. Pretendia-se uma sociedade politicamente assexuada e fraterna, onde aos inimigos só caberia um destino: a morte. É nesse contexto que Maximilien Robespierre, o Incorruptível e o máximo expoente da virtude republicana, sobe ao poder absoluto em 93 e instaura o Grande Terror, que vigoraria em França sensivelmente por um ano.

O legado da I República Francesa é, pois, um rio de sangue vertido por um regime despótico e completamente distanciado e avesso a qualquer ideia de liberdade e de igualdade. Mesmo nos plano dos princípios, a ideologia republicana destes tempos é profundamente anti-democrática. Os direitos individuais viram-se completamente negados, mesmo no direito mais elementar de defesa perante uma acusação pública de crime contra a República. A partir de 22 de Prairial do ano II da Revolução (10 de Junho de 94, segundo o novo calendário revolucionário), com a chamada “lei dos suspeitos”, o direito à defesa de um acusado perante o Tribunal Revolucionário passou a ser inexistente e qualquer cidadão podia ser levado a essa corte por qualquer denuncia feita por um “bom” cidadão. O caminho era sabido: julgamento de manhã, acusação antes do almoço, patíbulo ao fim da tarde.

Quando a política se impôs à alucinação ideológica e revolucionária, os montanheses responsáveis pelo Terror foram depostos e, por sua vez, guilhotinados (10 Thermidor, 28 de Julho de 1994). No dia anterior quando são depostos e aprisionados por uma facção da Convenção chefiada por Barras e Fouché, Saint-Just, o virtuoso “Anjo da Morte” do Comité de Salvação Pública, terá olhado para uma Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão afixada na sala do Comité e dito que aquele era o único legado que deixavam. Foi escasso, e não chega para valorar um regime acima dos demais, sobretudo quando o exemplo dado no exercício do poder contraditou cada um dos seus artigos.

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